O que pode ser pior que os horrores noturnos? Aquelas experiências vividas em nossa cama que nos fazem lembrar o medo que se esconde nas trevas, sorrateiro, rastejando pelas paredes, debaixo da cama, sob nossa coberta e entrando em nossa cabeça como um grotesco verme astral. Aquelas cenas de horror extremo gravados a ferro em nossa mente como a lembrança aterradora de uma época anterior a humanidade. Porém, os seres que habitam nossos medos noturnos poderiam ser reais? Quando o horror fantasioso se torna uma realidade macabra e cruel?
Amanda acordou gritando. Acalmou-se e procurou controlar a respiração acelerada. Sua testa suava profusamente e suas mãos tremiam sem controle. Foi tão real, a perseguição, o medo e a coisa. Havia também a faca e o sangue. Lembrou-se que odiava sangue. Demorou ate conseguir levantar. Ficava pensando coisas sem nexo algum, porém logo se sentiu capaz de tomar um banho. No banho lembrou-se de passar na escola e ver como estava seu sobrinho e também se lembrou de Miguel, o sacana. Mas o sonho a perseguia como uma fera que se diverte com sua vitima lhe dando ocasionais ataques apenas para minar suas defesas e depois a devorar.
 
Pegou a toalha e enxugou o corpo torneado decidida a não lembrar. O telefone toca e ela nem se importa. Arruma-se, observa e acaricia os belos e fartos seios e decide não usar sutiã. Coloca um vestido justinho e sai para mais um dia de trabalho naquela maldita firma do inferno. Pega sua bolsa e sai porta a fora, não deveria esquecer a porta aberta, e entra no carro. Pensa que se aquele gordo maldito a obrigar a mais um boquete ela vai enlouquecer, mas logo se convence que precisa do dinheiro. Fecha a porta do carro e sai para mais um dia de trabalho “duro”.
No caminho acende um cigarro e sintoniza numa radio de metal. Passa em frente ao colégio do sobrinho e acredita que perdeu o juízo. Pisa no freio com força e quase atropela uma jovem loira que ia atravessando a rua. Sai do carro assustada sem acreditar no que esta vendo e permanece algum tempo olhando para o vazio. Os carros atrás começam a buzinar e então ela volta a si. Entra no carro e volta ao percurso original, esquecendo da reunião no colégio do sobrinho e do que viria mais tarde.
 
Chegando à empresa ela estacionou o carro, pegou suas coisas e entrou no prédio da firma como um autômato sem vontade própria. Deu um alô para uns colegas, recebeu um chamado do chefe, pois estava atrasada e deveria se explicar a noite. Sorria maquinalmente, digitava no computador e tomava café. Depois do expediente foi à sala do chefe e ajoelhou-se na sua frente, depois tirou a calcinha e deixou ele se divertir com seu traseiro. Porém, aquela não era Amanda, era apenas seu corpo. Sua mente estava voltada a um acontecimento absurdo no começo do dia, sua mente estava voltada a garota ruiva que viu parada no meio da pista.
A noite no banheiro ela retomou o controle do seu corpo, sentou-se no chão e chorou. Não por que foi usada e sim por sentir que a loucura a visitava. Relembrando o ocorrido ela viu o sinal passar do vermelho para o verde. Viu a adolescente loira lhe xingar e também viu Michelle sua amiga de infância. Michelle estava morta, e bem morta há vinte anos. Ela não poderia estar no meio da pista naquele momento, vestindo as costumeiras roupas de menino e fazendo careta. Amanda estava convencida que estava louca. 
 
Amanha iria visitar o doutor Antonio e quem sabe conseguir uns dias de folga. Nada seria feito por algum tempo.
Preparava-se para deitar e o telefone tocou. Sem pressa alguma atendeu. Depois de alguns instantes largou o mesmo no chão e se cobriu todinha na cama. Estava assustada, sentia o medo lhe invadir com seus tentáculos deformados carne adentro e o receio de que algo mais estava errado, não era mais somente sua cabeça. Ainda ficou um bom tempo tentando acreditar no que ouviu naquele telefone. Não fazia sentido algum na realidade, mas a loucura seria assim tão real? Ela chorou, pois quem lhe respondeu do outro lado com a voz rouca e cansada foi Michelle. Sua amiga morta.
“Por que me deixou aqui?”
Amanda desceu do carro sem muita vontade, mas sabia que era preciso. Tinha estacionado ao lado do cemitério. Havia muito tempo que ela não voltava ali e isso a incomodava. Sentia como se tivesse renegado sua tão preciosa amizade infantil. Era hora de reaver os laços. Durante algum tempo caminhou por entre dezenas de lapides com os mais diversos dizeres. Não conseguiu deixar de pensar o quanto eram tristes, nada ali poderia lhe falar sobre quem agora habitava sob o peso dela. Eram homenagens cretinas. As pessoas simplesmente depositavam ali seus mortos, uma vez ao ano deixavam flores e choravam e no resto do tempo os esqueciam.
Há dezessete anos não vinha aqui. Há mais de dezessete anos tentou esquecer o que aconteceu, acreditou que a culpa sumiria, entretanto, não sumiu. E agora a culpa estava lá, sepultada sobre um monte de terra com uma lapide em cima onde estava escrito a singela frase “nunca esqueceremos.” Tudo que ela queria era esquecer.
 
Uma tarde de sol e duas garotas brincavam ao lado de um riacho. Uma delas decide desafiar a outra a atravessar o riacho a nado, quem não conseguisse essa ousada façanha era a mulher do vigário. Uma delas não sabia nadar e a outra somente percebeu isso quando já estava do outro lado. A garotinha sumiu e Amanda nunca mais foi a mesma. Talvez por isso a hostilidade familiar, ou mesmo a exclusão social que sofria. Ela se achava uma assassina e se portava assim. Ela se odiou desse dia em diante e nem fazia questão de se defender dos abusos provocados pelos garotos da rua, um atrás do outro, ela apenas deixava a fila se divertir e chorava. Ela queria morrer.
Súbito, sentiu uma estranha pressão nas pernas. Olhou para baixo e não pode conter um grito de pavor. Duas mãos esqueléticas a puxavam para dentro da cova. Não estava mais no cemitério, era o maldito riacho e estava sendo levada para dentro da água. A água a envolvia e sentia o fôlego escapar dos pulmões aos poucos, ardia.  Olhou para seu agressor e o pavor então a dominou. Uma coisa putrefata a puxava para junto de si. Onde deveria ser o seu rosto havia apenas ossos e pedaços de carne podre, cavidades orbitais vazias, plantas aquáticas eram o seu cabelo. Todo seu corpo estava contorcido como a dor dos afogados. A aberração a culpava e a queria. “por que me deixou aqui?”
Amanda acordou aos berros. Então percebeu que agitava às mãos no ar como se estivesse mesmo se afogando. Demorou vários minutos tentando se recompor.  Levantou e correu para o banheiro. Olhou para o chuveiro e teve medo. Decidiu não tomar banho. Voltou para o quarto se dirigiu ao armário e retirou vários frascos de perfume. Banhou-se com pelo menos quatro deles, vestiu uma roupa qualquer rapidamente sem nem lembrar de que deveria usar uma calcinha. Pegou outra rota para o trabalho, também tinha medo do caminho usual. Estacionou na frente do prédio da empresa e entrou sem cumprimentar ninguém.
Tremia da cabeça aos pés. Simplesmente ficou ali sentada na frente do computador e uma pilha de formulários sem saber exatamente o que fazer ou o que pensar. Foi acordada do estranho transe pelo chefe que queria uma “reunião particular” em sua sala agora mesmo. Dirigiu-se para a sala sem vontade alguma, seu corpo apenas se movia e ela nem sequer pensava. No caminho pegou um abridor de cartas e o guardou no bolso.
Seu chefe a fez ajoelhar-se como de costume, mas desta vez ela não o fez. Ficou ali parada olhando para o ridículo aparelho do chefe e então uma onda de ódio a fez agir. Retirou o abridor de cartas do bolso e abriu a virilha dele, que urrou de dor. Outros funcionários irromperam porta adentro para observar a cena. Com os seios de fora e sujos de sangue ela saiu do escritório para nunca mais voltar.
 
Entrou no carro e ligou o motor. Estava na casa onde passou toda a infância e onde vivenciou tanta tragédia. Sentada na velha cadeira de balanço na varanda ela via as crianças brincarem de queimada na rua e sorria. Uma das crianças, uma fraquinha e emburrada chamou sua atenção, tinha os cabelos loiros como um dia ela já teve e estava chorando num canto. Amanda levantou-se da cadeira e dirigiu-se ate a pequenina. Sentou ao lado dela no meio fio e a abraçou. A garota retribuiu o abraço com mais carinho ainda e as duas choraram.
Não entendia porque estava tão triste apenas deixou-se chorar como há tempos não fazia. Depois do forte abraço virou a menina para ver seu rosto, então gritou e a empurrou. Levantou aos tropeções tentando se livrar daquela pavorosa criatura que a pouco abraçava. Era o corpo decomposto de Michelle cuja caveira descarnada sorria e dos olhos ocos saiam lagrimas e tentava a alcançar com um gingando bizarro que somente um cadáver renascido teria.
Correu de volta para casa e tentou abrir a porta, mas que porta? Não havia mais porta e agora ela esta de frente a um enorme paredão do qual fluía sangue por entre pequenas brechas. Virou-se e viu que estava cercada de inúmeras copias da mesma criatura abominável e estas a acusavam de assassina. Aos poucos a cercavam, aos poucos rasgavam sua roupa enquanto Amanda gritava e aos poucos rasgavam sua carne com os dedos esqueléticos em formas de garras.
Amanda acorda suada em sua cama novamente. Em desespero pula da cama, chora profundamente e não consegue abafar os gemidos, ela acredita estar louca. O telefone toca, tremendo ela o atende. Seu irmão a recrimina por não ter ido à reunião da escola do sobrinho como ela havia prometido e ela o xinga. Bate o telefone com força e grita de ódio e de horror. Por quanto tempo ela grita? Uma eternidade, até que sem forças, cai no chão ao lado da cama.
Agora ela esta deitada na grama é o piquenique mensal da igreja que freqüentava. Ela tem doze anos e sorri muito ao constatar que uma das nuvens que passava no céu era idêntica a professora de matemática. Michelle lhe trazia um copo de refrigerante. Elas conversavam sobre garotos, especificamente sobre Vinicius. Amanda sempre tivera uma quedinha por ele e agora sua melhor amiga, sua irmã, lhe dizia que no dia anterior o garoto a pedira em namoro. Amanda disfarça um soluço e sorri. Michelle esta radiante.  Michelle lhe diz que a ama muito também, são verdadeiras irmãs, mas pede a ela que retire a faca enfiada em sua barriga ensangüentada. Amanda acorda.
Ela esta deitada em um divã e o seu medico anota monotonamente tudo que ela lhe diz. Desesperada ela lhe conta sobre o passado, sobre como se sente culpada pela morte da amiguinha. Falou-lhe dos terríveis sonhos que tinha com Michelle, das alucinações e do fato de acreditar que estava realmente louca. A tudo o medico respondia com entendo ou então sim é claro. Quando ela terminou de falar um silencio sepulcral invadiu o consultório. Durante um tempo nenhum dos dois se moviam e o doutor continuava rabiscando qualquer coisa na prancheta que tinha sob as pernas.
Amanda queria poder se mover, mas seus braços e pernas estavam firmemente atados no divã. Era uma prisioneira. O doutor levantou-se e, com um bisturi sangrento e enferrujado, começou a cortar pedaços do abdômen dela. Ela não sentia dor alguma e o doutor a olhava sorridente dizendo que estava apenas removendo suas partes ruins. Então, surpreso e contente, ele retira um grande volume da barriga dela e a entrega. Ela estava deitada em uma maca de hospital e segura o bebê entre os braços. O Bebe sorrir e se parece com o Vinicius, ela o beija sensualmente.
Estavam os três ali na clareira aberta na mata. Ao longe se podia ouvir o barulho de águas que corriam sem pressa alguma. Era uma tarde de sábado. Amanda presencia o ato, o garoto beija a sua amiga encostada numa arvore, ele a acaricia entre as pernas sob o olhar vingativo de uma garota apaixonada. Ela pega uma pedra pesada e o acerta. O chama de cretino enquanto esmaga sua cabeça com a rocha. Sua amiga chora apavorada incapaz de gritar estava dominada pelo pavor definitivo. Amanda sorri para ela sob os restos sangrentos de Vinicius.
Michelle se levanta e corre em direção ao riacho. Amanda corre atrás sorrindo e dizendo coisas sem nexo, não era mais ela. A pobre garota cai no chão e machuca o joelho e a amiga insana a observa com um sorriso de profundo desdém. Faz uma proposta maníaca e a garota machucada aceita então as duas começam a nadar. Amanda comemora na outra margem, ela venceu e agora teria Vinicius de volta! Teria?
Ela acorda de um sono estranho e percebe o erro que é a sua vida. Por muito tempo decidirá esquecer da sua súbita loucura. Todos sabiam do seu ato absurdo, todos a evitavam. E por isso sua vida tinha mudado tanto. Eles queriam ela fora da sua cidade, seus pais a queriam fora de suas vidas. Deitada na cama ela chorava, e no teto via velhos fantasmas acusadores.
“Por que me deixou aqui?”
Decidiu-se pelo melhor e naquela noite ela se enforcou. Era o fim das suas dolorosas lembranças. Seu corpo sem vida ficava balançando ali, de um lado para o outro, seu rosto era a expressão derradeira da dor, seus olhos saltados fitavam o vazio das recordações de uma vida criminosa. Amanda observava toda a cena sentada em sua cama e finalmente compreendia tudo. Amanda nunca esteve em sua casa. Aquele quarto branco com suas paredes acolchoadas não eram a sua casa. Aquela cama precária sobre um estrado de ferro não era a sua cama e nem o lençol que lhe serviu de fuga era seu. Seu castigo seria assombrar seus próprios pesadelos durante muitas eras naquele quarto de morte.
Os dois estavam parados na frente do quarto de numero 357. Perguntavam-se como abafar o caso enquanto dois enfermeiros retiravam um corpo feminino de lá. O mais novo dos médicos sofria calado, sofria de esperança perdida. Tinha acreditado que poderia ajudar Amanda a superar os crimes que acreditou ter cometido. Acreditava que podia ajudar a ela lembrar de como o garoto as tratara naquele bosque. De como foram violentadas e de como ele afogou a outra garota para enterrar seu crime. O melhor de tudo isso, pensou o doutor, e que amanha a noite ele vai fritar na cadeira elétrica. Pensou isso e sorriu.
O mais velho não pensava em nada. Durante todo o tempo em que dirigiu o asilo nova esperança já estava acostumado a essa tragédia e outras ainda piores. O velho doutor apenas olhava para um canto distante do corredor, penumbroso e sujo, mas toldado de sua tristeza pela bela cena que testemunhava. Uma garota parecia chamar alguém,  linda garotinha vestida como um garoto. Do quarto de Amanda, outra garotinha loira respondia e corria em sua direção. Por um minuto ela parou no meio do caminho, olhou o velho medico e sorriu, depois continuou em direção a sua amiga e desapareceram após um abraço.
E afinal pensou o doutor, nem todo sonho precisa necessariamente ser ruim.
 

Escrito por: José Brito Silva Junior (Leitor)

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