Barbara sempre foi uma aluna dedicada. Quando terminou o ensino médio passou de cara no vestibular para psicologia da UnB com a nota mais alta. Seus quatro anos de estudos foram em completa reclusão, pois levava muito a serio sua formação. Vinda de uma família de doutores não poderia ser diferente. Seu pai um cirurgião de renome e sua mãe uma professora universitária respeitada sempre foram linha dura com a formação da filha. Até que justamente no dia em que ela ingressou na sua pós- graduação eles morreram num acidente de avião. 

Barbara, chocada, assistiu ao enterro dos pais com toda a pompa que mereciam devido aos seus altos cargos. Seus familiares, os quais tinham pouco contato, nem deram muita atenção para ela que assistia a todos os ritos fúnebres inconsolável em um canto. Observava entre lagrimas pessoas de todos os níveis praticarem as mais diferentes formas de expressar dor ou homenagear os mortos. Ficou fascinada pelo teatro humano de saudade sincera e sentimentos falsos pelos dois e resolveu basear sua tese de doutorado no comportamento humano em relação à morte.

Após receber o velho apartamento da família como herança e algum dinheiro para se sustentar, teve inicio suas investigações macabras. Comprava jornais de domingo e buscava nos obituários novos alvos de sua tese, ia a enterros de pessoas de diversas classes sociais e anotava tudo que via em seu caderninho capa preta com um titulo branco singelo na capa, “sobre a vida e a morte”.
Deliciava-se com o espetáculo que era os enterros de famílias mais humildes. Parentes que gritavam desconsolados em favor do morto, filhas que desmaiavam e eram carregadas por terceiros. Algumas esposas que choravam agarradas ao caixão aberto do marido e em seguida se agarravam com amantes em áreas escuras do cemitério. Pessoas que cuspiam no morto, riam, comiam salgados, faziam festas e dançavam. Os enterros mais humildes eram uma encenação completa da comedia humana.
Em contrapartida os enterros da alta sociedade costumavam ser solenidades mais calmas. Alguns parentes mais chegados do defunto faziam discursos em púlpitos para uma platéia chorosa. Familiares que choravam eram retirados do local antes de desmaiarem e na hora do enterro em si o caixão era baixado ate o buraco por uma maquina enquanto viúvas e parentes vestindo roupas caras de luto observavam o discurso de um padre garboso.
Foi em um desses enterros “chiques” que ela viu pela primeira vez a estranha senhora. Para Barbara era apenas mais um parente do advogado bem sucedido que estava sendo enterrado, entretanto, um bizarro detalhe lhe chamou a atenção provocando indizível temor. A senhora parecia flutuar ao lado de dois parentes chorosos, pois a mesma, não parecia ter pernas para se apoiar.

Percebendo o susto na face da garota a senhora a fitou sorridente e, dando as costas para os outros parentes, caminhou em direção a porta do cemitério, porém agora ela possuía pernas por baixo da saia negra que vestia. Barbara permaneceu atônita observando a senhora sumir portão afora até que se deu conta que somente ela havia sobrado ali pois todos os parentes, incluindo o padre tinham ido embora. 

Quando chegou à sua casa tinha a funesta sensação de que aquela senhora não lhe era estranha. Sentindo um terrível mal estar não se entregou as anotações diárias que fazia sobre velórios e sobre a morte. Deitou no sofá, ligou o DVD e a televisão e foi assistir a mais um documentário sobre a morte com cenas reais. Deve ter cochilado um pouco quando foi acordada com um barulho que vinha da cozinha.
Alarmada olhou para a cozinha e a mesma se encontrava com a porta fechada em quietude sepulcral. As luzes da casa estavam todas apagadas e a tela da TV mostrava um corpo decomposto sendo atacado por moscas. Não se lembrava de ter apagado as luzes e levantou para acender a luz da sala. A luz não acendia. Apertou o interruptor mais umas três vezes e nada. Será que tinha faltado a luz? Mas a TV estava ligada.

Novamente o barulho na cozinha, entretanto diferente do barulho anterior. Um barulho como de passos, mas como se quem andasse por la estivesse completamente molhado. Passos molhados e pesados e ela tremeu. Olhou em volta mas estava tudo escuro exceto onde a TV iluminava. No meio do tapete tinha um prato ainda com algumas migalhas do lanche anterior, iria ter que servir.
Com o prato em punho se dirigiu a cozinha cada passo no corredor e a tensão aumentava. Encostou o ouvido na porta e durante algum tempo tentou ouvir o que se passava la dentro e nada. Tudo era completo silencio e se perguntou se não estivera apenas imaginando as coisas. De repente, um baque surdo na porta, como se alguém se jogasse nela derrubou ela de costas no chão. O pavor e o medo eram palpáveis e ela suava da cabeça aos pés. Começou a chorar.
Mesmo com o tremendo impacto do lado de dentro a porta continuou fechada e engatinhando de volta a sala ela resolveu que não teria coragem de abrir ela agora. Enquanto engatinhava ouvia vozes que pareciam vir de todas os lugares ao mesmo tempo, parecia sua mãe gritando por socorro, risos fantasmagóricos, um grito de horror que vinha de um lugar abafado, de dentro da terra talvez. E quando chegou na sala a televisão apagou de repente.
Durante algum tempo ela permaneceu deitada no escuro. A escuridão era completa e ela nada enxergava. Decidiu fechar os olhos e rezar para que fosse apenas um pesadelo. Súbito, uma mão toca em seu ombro, ela abre os olhos e vê a velha do enterro sorridente agachada ao seu lado. Barbara grita.

Ela acorda no chão ao lado do sofá, as luzes continuam acesas e TV ligada porem mostrando apenas o menu do DVD, o filme tinha acabado. Barbara sente o sangue na boca, pois bateu a cara no chão quando rolou do sofá, um belo rostinho vai ficar amanha pensou ela. Sentada com as costas encostadas no sofá, ela limpa com o antebraço o suor do rosto e retira a camisa empapada de suor ficando com os seios nus amostra.
Levanta-se dolorida ainda da queda e vai providenciar uma xícara de café. Por nada nesse mundo quer voltar a dormir hoje à noite e decide dar uma maneirada nos filmes e na pesquisa sobre a morte.

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No dia seguinte recebeu um email com uma noticia de um grande funeral realizado de um general. Sua promessa da noite anterior de uma vida mais “saudável” foi esquecida quando ela, depois de arrumada com seu melhor vestido de luto, entrou no fusca e foi direto ao local do enterro. O pesadelo e o horror noturno que vivenciou ficaram esquecidos no buraco mais profundo de sua mente, de tudo isso o que restou, foi àquela inconfundível certeza de algo não estava certo.
Com todo o gingado de uma verdadeira merecedora de um Oscar, Barbara conseguiu se passar por um dos convidados e assistir todas as homenagens feitas ao defunto. E tudo seria perfeito se entre os convidados que assistiam emocionados não estivesse la senhora ela que viu no enterro anterior. Sentada entre duas outras ela observava Barbara com um olhar penetrante. Barbara devolveu o olhar com audácia, e por um desses breves momentos que se assemelham a eternidades seu coração pareceu parar.

A senhora não possuía olhos, no lugar dos mesmos, havia apenas dois buracos escuros e profundos e em algum lugar bem la no fundo dos mesmos um pontinho brilhante. Um pontinho que parecia penetrar na alma de Barbara e descobrir todos os seus segredos mais profundamente guardados, segredos esses, que ela própria desconhecia. Não podendo segurar o imenso horror da visão, Barbara deixou escapar um grito bem alto parando toda a celebração e fazendo com que todos os convidados prestassem atenção nela.
Sem graça olhou em volta e percebeu que seu embuste tinha sido descoberto. Olhou para senhora e seus olhos eram dois olhos comuns que a olhavam com vivo interesse. Dois soldados surgiram da multidão e a escoltaram para fora onde foi colocada dentro de um carro da policia. Enquanto o carro se preparava para partir ela olhava para a estranha senhora que a fitava com um meio sorriso doentio. Ela olhava e se perguntava quem diabos era a anciã e decidiu no caminho da delegacia descobrir esse mistério.
Após explicações furadas e repreensões severas por estar em um enterro fechado ao publico, finalmente ela foi liberada para voltar para casa. Foi até a parada de ônibus que ficava em frente à delegacia e pegou um ônibus e retornou ao cemitério para pegar seu carro. O enterro já havia sido realizado e não havia mais ninquem lá com exceção de uma pessoa que parecia conversar sozinha em frente ao tumulo do general.

Entrou no cemitério e resolveu se aproximar furtivamente para ouvir o estranho monologo. A poucos passos da pessoa que conversava com a lapide ela se escondeu atrás de uma arvore e meio sem entender ouviu alguns trechos de uma conversa animada;

“Não se preocupe meu caro nem sempre é assim... ah claro que eu posso ajudar nisso... sim apenas siga em frente.”

O monologo terminou e então Barbara teve um choque ao constatar que era a senhora que tinha visto nos dois enterros, era a sua chance de descobrir quem era ela. Quando pensou em sair do seu esconderijo e interrogar a velinha viu que dois policiais se faziam a ronda ali perto andando entre outros túmulos distantes. Provavelmente, pensou ela, se certificando de que eu não volte mais aqui. Esperou que eles se distanciassem e viu que a velinha tinha sumido entre outras lapides mais distantes.

Baixou o véu de luto do seu chapéu e começou a seguir a senhora que caminhava tranquilamente entre os túmulos conversando sozinha. Por incrível que pareça os guardas do cemitério ignoravam completamente sua estranha presença e conversavam animadamente parados num portão. Quando pensou que estava tudo certo um deles a chamou. Ela se virou tremendo da cabeça aos pés.

Com um aceno de mão o guarda permitiu que ela prosseguisse e voltou a sua conversa animada. Respirando fundo e aliviada Barbara olhou em volta buscando a senhora, porém ela tinha sumido, simplesmente desapareceu sem vestígio algum. Nervosa fingiu que chorava em uma lapide qualquer para não parecer suspeita e voltou para o carro dando um aceno de despedida para os guardas encostados no portão do cemitério.

Enquanto dirigia de volta para casa teve a funesta sensação de que não estava sozinha no carro, olhou pelo espelho retrovisor diversas vezes para o banco de trás e não havia ninguém lá. Enquanto esperava o sinal abrir para prosseguir a viagem, procurou um cd para acalmar e escolheu master of puppets do Metallica, ligou o som e deixou a mente viajar nas ondas do som perfeito da banda. Talvez por esse simples detalhe ela não tenha percebido um estranho amassado no banco esquerdo de trás, um amassado como se alguém estivesse ali também curtindo a carona e o som.
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Chegando em casa tomou uma ducha demorada e pensou em todos os detalhes daquele estranho dia. Porém, uma certeza mais profunda a incomodava bastante. Desde que saiu do cemitério sentiu como se estivesse acompanhada de uma presença bem sinistra. Ainda no chuveiro olhava vez ou outra para a porta entreaberta como se no intimo soubesse que alguém estava ali olhando para ela. E logo essa suspeita se tornou realidade quando, pelo canto do olho, viu um vulto passar rapidamente pelo corredor.

Desligou o chuveiro com pressa mal retirando o sabão do corpo. Pegou uma toalha e com um esfregão de privadas na mão saiu no corredor. Olhou para os dois lados e não havia ninguém. Suspirou aliviada, tinha sido apenas sua imaginação. Ia retornar para o chuveiro quando algo pesado caiu no chão da sala. Barbara gritou. Havia alguém em sua casa.

Com medo e por precaução decidiu caminhar devagar, nas pontas dos pés, em direção a sala com o esfregão em punho. Chegando a sala não havia ninguém, nada estava fora do local e ela começou a achar que estava ficando louca. Súbito, a televisão liga sozinha, com o susto Barbara cai de costas batendo a nuca na quina da mesinha de canto. Sente que vai perder os sentidos, mas se esforça para não desmaiar. Senta-se no chão e leva a mão esquerda ao machucado. Doía e sangrava muito. Na tela da TV se desenrolava o jornal da noite. Barbara olhou para os pés e percebeu que tinha pisado no controle e por isso a televisão estava ligada.

A dor na cabeça era quase insuportável e ela começava a chorar. Com esforço conseguiu se levantar e sentar no sofá. Encostou a cabeça no braço quente e morno que se oferecia para ela e fechou os olhos. Um braço? Viro-se na mesma da hora empurrando a dona do braço que para seu mais profundo pavor era a senhora que costumava ver nos funerais. Levantou-se do sofá e encostou-se na parede ao lado da televisão, chorava muito e gemia mal conseguindo articular uma palavra enquanto a senhora apenas a observava sorridente.

- Por... Por deus quem é você?

- Que estranho pensei que já me conhecia – respondeu a senhora levantando-se e caminhando na direção de Barbara. – desculpe os meus modos senhorita a muito tempo não tenho alguém “vivo” para conversar.

- Vivo? – perguntou Barbara que lutava em vão tentando afastar a senhora que a abraçava. Então a mesma disse algo bem baixinho em seu ouvido e tudo começou a fazer sentido. – entendo... Mas, por que agora?

- Ora minha querida foi apenas uma dessas fatalidades que ocorrem na vida. – respondeu sorridente a anciã. – agora vamos minha querida tenho outras pessoas para visitar, não se esqueça de que deve seguir sempre em frente.

- Pode me ajudar?

- Mas e claro que posso lhe ajudar – respondeu enquanto ajudava Barbara a se levantar.

- É por ali?

- Sim minha pequena, siga sempre em frente.

Enquanto Barbara caminhava em direção a luz sorriu consigo mesma ao lembrar o que a boa senhora tinha lhe sussurrado ao ouvido.

“Eu sou aquela que vem para todos e agora eu sou a sua morte.”

Mais um conto escrito por: José Brito da Silva Júnior 

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